O Arcano da Contra-inspiração e da Sedução
Três personagens estão representados de pé. No meio, sobre um pedestal vermelho em forma de cálice, um hermafrodita com asas e chifres. Abaixo, duas figuras, uma delas feminina e a outra masculina, pequenas e dotadas de atributos animais; estão presas, por uma corda que lhes passa ao pescoço, a um aro que se encontra no centro do pedestal. O personagem central está totalmente marcado pela dubiedade: despido, veste apenas cintos vermelhos que parecem segurar seios e genitais postiços; tem na cabeça uma curiosa touca amarela, da qual sobem dois chifres de veado; duas asas amarelas (ou azuis, na ed. Grimaud), de formato semelhante à dos morcegos, brotam das suas costas. Tudo indica que o personagem é do sexo masculino, mas seus seios estão desenvolvidos como os de uma mulher.
Uma face se inscreve em seu ventre e, nos joelhos, dois olhos. Suas mãos e pés apresentam características simiescas; a mão direita, erguida, mostra o dorso; a esquerda segura a haste de uma tocha. O par acorrentado é visto de três quartos. Estão completamente nus, mas têm uma touca vermelha da qual sobem chifres negros. Os dois têm rabo, patas e orelhas de animal; escondem as mãos atrás das costas e ficamos sem saber se estão atadas ou não. No nível em que os dois personagem menores se encontram, o chão é preto, mas na altura do pedestal torna-se azul (ou ou vermelho) com listras variadas. O fundo é incolor.
Significados simbólicos
As provas e provações. As tentações e seduções.
Magias. Desordem. Paixão. Luxúria. Dependência.
Intercâmbio, eloquência, mistério, força emocional.
Interpretações usuais na cartomancia
Paixões indomáveis. Atração sexual. Ação mágica, magnetismo. Capacidade milagreira. Poder oculto, exercício de influências misteriosas. Proteção contra as forças obscuras e os encantamentos.
Mental: Grande atividade, mas totalmente egoísta e sem qualquer preocupação pela justiça.
Emocional: Pluralidade, diversidade, avidez, inconstância. Busca em todas as direções para atrair tudo. Sem a menor preocupação com o próximo. Libertinagem.
Físico: Grande irradiação neste plano, em particular no domínio material e nas realizações concretas. Poderosa influência sobre os outros. Forte atração pelo poder material. Tem, contudo, uma deficiência: todo o sucesso que promete tende a ser obtido por vias censuráveis. Desta forma a fortuna será alcançada e os delitos têm grande probabilidade de permanecerem impunes. Inclui também a punição: de acordo com a sua relação com as outras cartas, pode significar que os sucessos serão efêmeros e que o castigo virá na sequência. Do ponto de vista da saúde: instabilidade nervosa, transtornos psíquicos; aparição de enfermidades hereditárias.
Desafios e sombra: A ação parte de uma base má e seus efeitos podem ser calamitosos. Desordem, inversão de planos, coisas obstruídas. Do ponto de vista da saúde: ampliação do mal, complicações. Disfunção. Superexcitação, sensualidade. Ignorância, intriga. Emprego de meios ilícitos. Enfeitiçamento, fascinação repentina, escravidão e dependência dos sentidos. Debilidade, egoísmo.
História e iconografia
Durante a baixa Idade Média o Diabo era representado usualmente como um dragão ou serpente, imagem derivada, sem dúvida, de seu papel no Gênese.
Por um processo simbiótico – característico da iconografia – Eva e o Diabo se fundiram com frequência na figura da serpente com cabeça de mulher: isto pode ser visto quase sempre nas ilustrações dos mistérios franceses que falam da Queda.
O desenvolvimento antropomórfico, que levou o Diabo a se converter na figura que conhecemos tem sua origem, provavelmente, nas tradições talmúdicas e nas lendas pré-cristãs, segundo as quais a serpente edênica teria tido mãos e pés de homem, membros que perdeu como castigo por sua maldita intervenção no drama do Paraíso, ficando condenada a arrastar-se até o fim dos tempos.
De modo similar o Diabo aparece no Apocalipse de Abraão, onde o Tentador é descrito como um homem-serpente, descrição retomada por Josefo e por boa parte dos autores judeus dessa época.
Já no Antigo Testamento (Jó 1,6-12 e 2,1-7) menciona-se esta humanização de Satã, e em Mateus (4, 3-11) aparece com toda clareza o antropomorfismo do personagem. Ele é assim descrito num manuscrito de Gregório de Nicena, onde toma a forma de um homem jovem, alado e nu da cintura para cima.
No final do primeiro milênio a imagem do Diabo sofre a sua mais cruel metamorfose, que transforma o mais formoso dos anjos em sinônimo de abominação e horror.
Van Rijneberk atribui aos miniaturistas anglo-saxões essa mudança iconográfica, que correspondia à simplicidade analógica da época. Se o Diabo continha a soma de todos os pecados e escândalos, seria lógico, dessa forma, que fosse representado como o apogeu de feiúra e pavor.
O homem com garras das figuras mais tênues sofreu a inclusão de chifres, dentes enormes, pêlos, cascos de bode, seios enrugados, rabo que terminava em seta. Assim aparece nos manuscritos alemães dos séculos X e XI, e no Missel Oxonien do bispo Léofric (960-1050). O Diabo da lâmina do Tarô – um morcego hermafrodita – mostra-se como herdeiro dessa representação.
Van Rijneberk destaca o sentido metafísico de Satã para os Pais da Igreja, longe ainda dessas representações. Entre os séculos III e IV, Atanásio relatou as fadigas que costumavam acompanhar os tentados: o aspecto do Maligno produzia mais angústia do que repulsa; sua voz era terrível e seu movimento oculto como o de um assassino.
Tanto Cirlot como Oswald Wirth – a partir de seus respectivos planos de observação – evitam entrar no complexo campo da demonologia ao comentarem o Arcano XV.
Assim, o primeiro destes autores se limita a compará-lo ao “Baphomet dos templários, bode na cabeça e nas patas, mulher nos seios e braços” e a mencionar que o personagem tem como finalidade “a regressão ou a paralisação no fragmentado, inferior, diverso e descontínuo”.
Oswald Wirth, por outro lado, afirma que o Diabo é o inimigo do Imperador (IV) na luta política pelo poder no mundo material, e se pergunta quem é “que opõe os mundos ao Mundo, e os seres entre si”.
Para Ouspensky, o Diabo “completa o triângulo cujos outros dois lados são a morte e o tempo”, no sentido da formalidade do ilusório.
Ele dá origem ao terceiro e último setenário do Tarô, plano do mundo físico ou do corpo perecível do homem. Do ponto de vista da finitude temporal, não é menos importante do que o Prestidigitador para o reino do espírito, ou o triunfal protagonista de O Carro (VII) para a análise psicológica.
“Na medida em que sempre houve áreas sombrias e ainda desconhecidas para o conhecimento e que presumivelmente, os enigmas subsistirão sempre – diz Jaime Rest no seu artigo Satanás, Suas Obras e Sua Pompa —, o demoníaco foi e continuará sendo uma constante de nossa realidade, já que esta experiência parece nutrir-se primariamente de algo que se desdobra além do domínio humano, e cuja índole tremenda e estremecedora suscita em nós este abalo íntimo que os teólogos denominam temor numinoso”.
O estudo dessa figura pode incluir as metamorfoses sofridas pelo Diabo (incluindo a variabilidade do aspecto: da beleza resplandecente com que Milton e William Blake o imaginaram até o horror da sua corte nas telas de Goya) para retornar ao memorável ponto de partida de onde se concebe sem dificuldades a permanência do demonismo: Satã como “um desafio da ordem que os homens atribuíram a Deus”.
A figura do Tentador, por outro lado, é inseparável das legiões que o servem (ou seja, da ideia do Inferno), e o Tarô repete esta associação ao representá-lo junto com o casal acorrentado – seres que podem ser tanto seus prisioneiros como seus colaboradores. A repetição do esquema dantesco é atribuída por Carrouges à paralisia imaginativa dos séculos posteriores em relação ao tema; daí a fixação e o empobrecimento do ciclo mítico na literatura europeia.
Esta visão demonológica contemporânea, que faz do Diabo uma metáfora conflitante da dignidade humana, não é menos importante que a tradicional. Impõe-se, ao menos, como mais uma referência para a análise atualizada do Tarô.
Os comentários reunidos até aqui, porém, estão longe de esgotar as indicações para o estudo deste personagem tão ambíguo.
Vale a pena conhecer as reflexões de G. O. Mebes, em Os Arcanos Maiores do Tarô, sobre o papel de Baphomet, enquanto representação “da bipolaridade do turbilhão astral”, passagem inevitável no processo evolutivo.
O Livro de Jó e o curioso papel de Satanás
Nos estudos do arcano 15 costumo lembrar de um contraponto às abordagens usuais dessa figura ambígua. Gosto de citar a passagem inicial do Livro de Jó (Jó 1, 6-12):
Um dia, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor. Entre eles, também Satanás. O Senhor disse, então, a este: “De onde vens?” – “Acabo de dar umas voltas pela terra”, respondeu ele. O Senhor disse-lhe: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e afasta-se do mal.” Satanás respondeu ao Senhor: “É sem motivo, que Jó teme a Deus? Não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste as obras de suas mãos, e seus bens cresceram na terra. Estende, porém, um pouco a tua mão e toca em todos os seus bens, para ver se não te lançará maldições na cara!” Então o Senhor disse a Satanás: “Pois bem, tudo o que ele possui está a teu dispor. Contra ele mesmo, porém, não estendas a mão”. E Satanás saiu da presença do Senhor.
Fica explícito que Satanás dialoga com o Senhor e é autorizado a realizar as provas. Jó sofre toda sorte de revezes que se estendem mesmo depois de o Diabo se convencer das virtudes desse santo homem. Mas, no final de tudo, o Senhor restituiu em dobro a Jó tudo que lhe fora tirado: “Jó viveu ainda cento e quarenta e quatro anos e viu seus filhos e os filhos de seus filhos até a quarta geração. E morreu velho e cumulado de dias.”
Costumo recorrer ao bom humor para traduzir um certo papel do personagem do arcano 15: ele é o inspetor de qualidade autorizado por Deus para colocar os homens à prova. E esse mesmo papel se repete quando Cristo se prepara para sua missão final nesta terra: o Diabo vem testar o próprio filho de Deus oferecendo tentações de poderes. Sem maiores problemas o Cristo passa pelas provas e o Diabo sai de cena.
Essa conotação de “inspetor de qualidade” pode nos ajudar, entre outros atributos, a refletir sobre estratégias de ação, quando o arcano 15 sai numa tiragem com a função de indicar o conselho ao consulente para enfrentar algum desafio ou para corrigir uma situação difícil.
Pensar simbolicamente exige muito mais do que classificar sumariamente as cartas como “boas” ou “ruins”. Esse alô vale também para buscarmos compreensão mais ampla da carta 13, A Morte, e da 16, A Torre.
Fontes
Alberto Cousté, O Tarô ou a máquina de imaginar. Rio, Ed. Labor, 1977. (Fonte básica para a descrição inicial dos 22 arcanos maiores e para o ítem História e Iconografia)
Anônimo (Valentin Tomberg), Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô. São Paulo, Ed. Paulinas. (O subtítulo da tradução espanhola (Herder, 1987) foi copiado nesta compilação)
Paul Marteau, O Tarô de Marselha. São Paulo, Ed. Objetiva, 1991. (Essa obra serviu de base para o ítem Interpretações usuais na cartomancia)
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