Brother Satã – O corpo e a ausência de si

Publicado por Leila Pereira

“Se acredita nessas histórias, você é um tolo. Se não acreditar é um perverso!”

Lendo a Alma Imoral, de Nilton Bonder, me deparei com um capítulo sobre O corpo e a ausência de si, chego à história Brother Satã e o Arcano XV sorri para mim. Eu estava diante do Diabo, a carta XV, do tarot.

Satã surge e o significado da carta começa a se misturar com a leitura do livro. Se no início ele apenas aparecia como um obstáculo à vida, algo que desencaminha, ou se era apenas uma limitação, como foi aos poucos se transformando em tentação ou o adversário da vida?

Brother Satã - O corpo e a ausência de si
O Diabo (Satã) no Tarô de Marselha e no Rider-Wide

Se, de fato, traz à luz as grandes questões humanas: o que é correto? O que é bom? Será que ele é o opositor? Ou simplesmente descortina a oposição que há em nós? Ele faz a provocação sobre arriscar-se, ou somos nós que enxergamos o risco. É ele quem apresenta o exagero? Ou nós que exageramos. De modo especular o Diabo expõe nossas angústias e dúvidas e assim apresenta os riscos e as transgressões. A nossa própria dualidade é apresentada, desnudada e descoberta.

Ele é a dificuldade em dissociar, diferenciar a luz da escuridão. Por isso, a confusão. Pode apresentar a paralisia humana a padrões ultrapassados, mas também convida a descobrir novas possibilidades da própria vida. Será um agente da transformação ou da convenção? Fica o paradoxo.

O corpo e a ausência de si

Transcrição do cap. “Corpo e ausência de si” do livro A Alma Imoral de Nilton Bonder

A inversão da tradição ocidental – que se dizia defensora da alma quando em realidade se preocupava com as questões do corpo – fez emergir das profundezas de nosso inconsciente uma importante personagem: Satã.

Sua origem remonta ao folclore hebraico, mas sua condição “satânica” é uma invenção do Ocidente. Em sua concepção original, Satã aparece como um “obstáculo” à vida ou algo que “desencaminha”. Poderia ser compreendido simplesmente como uma limitação, mas foi ganhando força como um símbolo de “tentação” ou como uma entidade que “joga contra” a vida. Com a tradição cristã veio a simbolizar a própria ideia de “traidor”, que de forma sub-reptícia quer nos levar à transgressão.

Na verdade, Satã não seria tão importante se as questões que ele traz à luz não fossem as grandes questões humanas. Em questões que suscitam maior dúvida e que envolvem algum nível de rompimento de expectativas, normas ou padrões, veremos a figura de Satã sempre presente. Ele tenta um indivíduo com a possibilidade de abrir mão de um “correto” em nome de um “bom”, o que para nós, é justamente a tarefa da alma.

No entanto, Satã aparece como o exagero ou a exacerbação dos riscos que irão se provar destrutivos e malignos. E, não há dúvida, a possibilidade da alma de se fazer destrutiva sem o corpo é bastante real. O verdadeiro Satã então uma alma sem corpo.

A figura de Satã, no entanto, passou à cultura e à tradição ocidental como a maior arma do corpo e da preservação contra a alma e a transgressão. E muito já se fez e se deixou de fazer por conta de tomar-se a alma por Satã.

As tradições religiosas de massa têm essa grande preferência por modelos simplificados da realidade. É mais fácil e conveniente apresentar Satã como um possível resultado de risco, da transformação, do atrevimento ou da transgressão do que o apresentar também como um corpo que se desvincula dos interesses do corpo, faz-se também presente como um corpo que se desvincula dos interesses da alma.

O baal Shem Tov perguntou a seu discípulo rabi Meir: “Você se recorda de um sábado em que você estava começando a aprender sobre as Escrituras… quando o salão da casa de seu pai estava repleto de convidados? Lembra que eles o colocaram sobre a mesa e você começou a recitar o que havia aprendido?”

O rabi Meir respondeu:

– “Certamente! Lembro-me bem quando minha mãe subitamente correu e arrancou-me de cima da mesa, interrompendo o que eu recitava. Meu pai a princípio ficou muito irritado com aquilo até que minha mãe apontou para a porta e lá estava um homem estranho parado à entrada da casa. Vestia uma pele de cabra, uma roupa de camponês e lançava seu olhar diretamente para mim. Todos entenderam rapidamente que ela temia o mau olhado. Ela ainda apontava para a porta quando o homem misteriosamente desapareceu.”

– “Era eu”, disse o baal Shem Tov. “Em momentos especiais como estes, um olhar pode inundar a alma com uma grande luz. Mas o temor dos homens constrói muralhas para impedir que a luz se propague!” (Buber, Early Masters, 42)

Satã é a própria dificuldade que temos de distinguir a luz da escuridão. Muitas vezes a luz não está nem naquilo que promove a preservação, nem no que promove a transformação. Por interesses naturais à cultura e à moral, no entanto, nossa sociedade resolveu transformar Satã num espantalho que realmente nos afasta da mudança.

É por medo dele que se obteve um instrumento a mais para manter as pessoas ocupadas em seus próprios padrões sem se permitir ousar e descobrir novas possibilidades da própria vida. Sua linguagem e sua imagem passaram a servir como porta-vozes da imutabilidade da tradição, da família e da propriedade. Sua fala eloquente e repleta de exemplos da vida e da realidade são poderosamente paralisadoras.

O mundo dos medos, das divisões, das defesas e do controle são produtos dessa fala das consciências humanas que demanda a convencionalidade.

Um judeu de Kossov, adversário do chassidismo, veio até o rabi Mendel, que era membro deste movimento, e desabafou sua frustração por estar casando a filha e não ter dinheiro para o dote. Suplicou ao rabi por um conselho de como poderia conseguir a soma necessária.

– “De quanto você precisa?”, perguntou o rabi Mendel. O total chegava a algumas centenas de florins. O rabi Mendel abriu a gaveta de sua escrivaninha e deu o dinheiro ao homem.

Pouco tempo depois, ao saber o que acontecera, o irmão do rabi veio até ele bastante contrariado.

– “Quando você tem de fazer gastos consigo e com sua família nunca tem dinheiro… mas vem um adversário e você dá tudo o que tem para ele?”

– “Alguém já esteve aqui antes de você”, disse o rabi Mendel, “e disse justamente a mesma coisa, mas com um detalhe: expressou-se muito melhor que você.”

– “Quem foi?”, perguntou seu irmão. O rabi Mendel respondeu:

– “Foi Satã!” (Buber, Late Masters, p.98)

A alma é espontânea e o corpo é ponderado. A eloquência das justificativas do último são a fonte de tantas interdições desnecessárias. Um dos grandes segredos da tradição chassídica para fazer frente às posições do corpo é usar pequenas histórias em vez de assertivas e argumentações. Sua arma era implacável contra a hesitação e a vacilação e produzidas pela ponderação.

O rabi de Tanzer explicava a razão da eficácia das historinhas: “Se acredita nessas histórias, você é um tolo. Se não acreditar é um perverso!” O receptáculo que transmite informações nessas pequenas histórias não é a ponderação e o raciocínio. É ao contrário, o paradoxo de se deixar levar por elas sem acreditar – entendendo-as como uma expressão figurada, para não ser tolo – e ao mesmo tempo sem desconsiderá-las – não lhes atribuindo uma qualidade ilusória, para não ser perverso.

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