Em abril de 2020, quando o coronavírus se vestiu de pandemia sem sinais de arrefecimento, comecei a pensar sobre o que eu poderia escrever para o público do Clube do Tarô, que fugisse às notícias comuns e deprimentes, e que contribuísse para melhorar a ansiedade e o astral das pessoas confinadas, abordando um tema que fosse ao mesmo tempo do interesse geral e alimentasse a alma de quem os lesse.

Com esse intuito, passei a pesquisar e observar com mais cuidado as matérias publicadas em vários jornais e revistas (El País, Folha de São Paulo, revista Piauí, Época etc.) e percebi que, em geral, as notícias eram tristes, desanimadoras e muitas vezes desagregadoras. Eu precisava de algo que fugisse a esse padrão, pois meu objetivo era lidar com o coronavírus, dentro do possível, de uma maneira alegre, irônica e informativa, sem cair no linguajar comum da tragédia que estávamos passando, e que ainda hoje estamos vivendo.
E foi no campo da poesia que encontrei uma resposta para minha dúvida. Gosto muito de poesias e um dia, lendo o site Alguma Poesia (www.algumapoesia.com.br), encontrei um poema de André Caramuru Aubert, denominado “Se”, cujo “texto curto, com apenas sete versos, parecia resumir a atual situação de pandemia global e pandemônio nacional, na qual o governo federal joga a favor do vírus e contra a vida dos brasileiros. Nesse contexto, como diz o poema — que foi escrito antes e obviamente refere-se a outra coisa — a cada manhã desenha-se a possibilidade de um verdadeiro apocalipse”. (Carlos Machado, editor do site Alguma Poesia)
SE
como se a cada manhã,
a cada novo dia, o fim,
um fim horrendo, cruel e sujo,
um verdadeiro apocalipse, enfim
(você me entende?),
fosse uma possibilidade bastante real e concreta.
Dizem que os artistas de um modo geral e os poetas em especial mantêm uma comunicação direta com os deuses e por isso pressentem e anteveem fatos que se descortinarão no futuro. Bem(n)dito e feito. Em nossa coluna no Clube do Tarô A Arte em Tempo de Coronavírus pudemos constatar essa ligação divina através de vários posts sobre filmes, desenhos animados, músicas, livros etc., os quais descreveram antecipadamente, às vezes com minúcias, o que nos ocorreu em 2020 e tem ocorrido em 2021.
Com o isolamento social, os eventos culturais tiveram que parar, pois foram fechados os serviços não essenciais, dentre eles os teatros, museus e demais locais de exibições artísticas. Mas mesmo assim é possível ter contato com a arte. A arte nos coloca em todos os lugares do mundo e em todos os tempos, mesmo que o espaço no qual estejamos vivendo seja restrito e solitário. O confinamento nos causa ansiedade e é aí que devemos dar vazão ao nosso talento em doar e/ou receber demonstrações artísticas virais, afinal a arte é fundamental para mantermos a sanidade mental, física e psicológica num período tão confuso e avassalador.

Abaixo podemos apreciar mais dois poemas de André Caramuru Aubert criados antes da pandemia, os quais também nos remetem ao isolamento físico necessário para combater e nos livrar do contágio do vírus.
Domingo
enjaulado nesta sala, neste apartamento
neste domingo ensolarado de céu muito azul
eu olho o tempo passar
sem ter o que fazer, para quem ligar
pego uma cerveja na geladeira e
lá fora, longe, uma motocicleta ruge, quebrando o silêncio
eu vou até a janela
e olho.
21:38
sentada no ponto de ônibus uma
mulher, sozinha, mexe no celular. na
esquina, um catador de lixo dobra caixas
de papelão para empilhar na carroça. a luz
branca do poste atravessa as folhas da sibipiruna,
salpicando o asfalto de manchas quase claras.
sabem ser bem tristes, às vezes,
as noites de são paulo.
André Caramuru Aubert é historiador, tradutor, romancista, poeta e prosador. Ultimamente colabora regularmente com o caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, e com o jornal literário Rascunho, no qual apresenta e traduz poetas estrangeiros. Nascido em 1961, é um paulistano cujo objeto de inspiração é quase sempre a vida cotidiana e seus pequenos detalhes, com ênfase no seu relacionamento com a mulher amada.
Em entrevista dada ao blog “Como eu escrevo”, de José Nunes, em 13 de fevereiro de 2020 (https://comoeuescrevo.com/andre-caramuru-aubert/), André relata como é seu processo de criação poética “Poemas só escrevo quando a ideia vem. Não forço. Posso escrever mais de um poema por dia, posso passar um mês sem escrever. E, mesmo quando escrevo por impulso, os poemas costumam sofrer, depois, um monte de alterações: cortes, acréscimos, mudanças de pontuação, de quebras de linha, trocas de palavras” (…)
Sobre a inspiração e ideias que lhe acontecem, explicita: “Não sei de onde todas elas vêm, mas posso dizer que fico inspirado quando leio. Borges dizia que é mais importante ler do que escrever, e no meu caso isso é uma verdade absoluta. Na realidade, para mim a leitura é uma condição essencial para a escrita. Mas não me faltam ideias, o que é escasso é o tempo. Tenho mais ideias do que capacidade e tempo para executá-las. Não sei, e digo isso com toda sinceridade, o que é “bloqueio criativo”, que assombra tantos escritores de ontem e de hoje”.
E complementa: “Não sei exatamente quando decidi que queria ser escritor, mas acho que foi bem cedo. De alguma forma, sempre soube que queria ser escritor. Cresci cercado por livros e minha família sempre esteve envolvida com livros e arte. Com dezoito anos eu já tinha uns duzentos contos escritos. Todos eles seguem inéditos, na gaveta, e assim devem permanecer, porque não são bons. Mas fizeram parte de um processo de aprendizagem e de amadurecimento que foi importante para mim. De qualquer forma, escrever é a única coisa que sinto que sei fazer. E já escrevi de tudo, não foi só literatura, não. Já fui colunista de jornal e de revista, já escrevi sobre história, tecnologia, surfe, marketing farmacêutico, meio ambiente, esporte de aventura, estatísticas de segurança no trânsito, e até mesmo… sobre livros!”.
“Sempre achei, quando escrevia, que estava praticando, que nada deixaria de ser útil para meu objetivo mais importante, que era a literatura. Por exemplo, quando uma revista me encomendava um artigo de “três mil e quinhentos toques, para quarta-feira”, aquilo me obrigava a uma disciplina, de forma, conteúdo e prazo que ajudava a me educar (…) Naturalmente, em contraste com todo esse universo de escrita por encomenda, com meus romances e poemas, posso me dar ao luxo de não ter pressa. Escrevo, reescrevo, apago, faço de novo… Se o meu próximo romance levar 15, 20 anos para ficar pronto, que assim seja”.
Algumas características muito próprias me chamam atenção nos livros de poesias de André: em primeiro lugar a ausência de letras maiúsculas e os recuos de alguns versos em certos poemas, o que graficamente torna o texto mais elegante e delicado. Muito dos seus poemas contém uma baliza indicando a inspiração, ou melhor sua lembrança no momento em que o poema surgiu (“depois de Li Po”, ” Depois de ‘Next’, de Charles Wright” etc.), mas esse marco não gera continuidade do tema abordado pelo mesmo, o que me leva a crer que a ideia por trás disso é apenas indicar a origem do seu trabalho, nascido muitas vezes da leitura de outros poetas. E finalmente, o que eu mais aprecio em seus livros que é a prosa embutida na poesia, a qual escorre pelas páginas harmoniosa e cadenciadamente, mantendo um diálogo contínuo com o leitor, o qual consegue visualizar a beleza, com riqueza de detalhes, das situações e fatos banais que compõem o nosso cotidiano.
Poesia e beleza estão estreitamente ligadas, entrelaçadas. Assim, podemos afirmar que os poemas de André é o belo em travessia pelas coisas da vida, o que pode estar em muitos elementos do dia a dia: no zupt, zupt, zupt, zupt do limpador de para-brisa do carro da mãe; num poema escrito para a mulher amada quando ela completou 22 anos; num questionamento que o autor faz se teve ou não uma infância feliz; numa mesa de almoço repleta de pessoas vozes altas; na gata deitada no banco, dormindo, ou quase…
Referências:
1) Como eu escrevo, de José Nunes – https://comoeuescrevo.com/andre-caramuru-aubert/
2) Número 339 e 444 do Boletim Poesia net, de Carlos Machado – http://www.algumapoesia.com.br/ poesia.htm
3) Entre/Vistas, de Artur Gomes – https://arturgumes.blogspot.com/2020/05/andre-caramuru-aubert-entrevistas.html

André Caramuru Aubert, nasceu em São Paulo em 1961. É bacharel e mestre em História pela USP. Desde janeiro de 2014, seleciona e traduz mensalmente, para o jornal Rascunho, poemas de algum poeta estrangeiro, muitos dos quais inéditos no Brasil, número que já está chegando aos noventa. Colabora regularmente com o caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo.
Publicou cinco romances (Cemitérios, A Vida nas Montanhas, Acultura dos Sambaquis, Só uma estranha luz como pensamento e Poesia Chinesa) e três volumes de poemas (outubro/dezembro), As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros e Se/o que eu vi), pela Editora Patuá. André ainda tem um romance inédito guardando publicação (Estevão) enquanto trabalha em outro (Pés Negros), além de preparar, para publicar em 2021, mais um volume de poemas.
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