Segundo a Igreja Católica existem quatro virtudes cardinais que polarizam todas as outras virtudes humanas. O conceito teológico destas quatro virtudes foi derivado do esquema de Platão e adaptado por Santo Ambrósio de Milão, Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino. Elas são perfeições habituais e estáveis da inteligência e da vontade humana, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam a nossa conduta segundo a razão e a fé.
As quatro virtudes cardeais são:
A Prudência. A razão e a medida para discernirmos as nossas escolhas.
A Justiça. A vontade de dar aos outros o que lhes é devido.
A Força. Aquilo que nos assegura a firmeza nas dificuldades.
A Temperança. A Moderação. O Equilíbrio.
Neste pequeno ensaio falaremos sobre a boa medida, sobre a Temperança que Aleister Crowley chamou de Arte em seu Tarot de Thoth. A Arte possui o atributo zodiacal Jupiter (o planeta da expansão) em Sagitário (A Constelação do Arqueiro, da flecha que visa alcançar grandes distâncias).
Na Cabala representa o caminho 25 da Árvore da Vida que liga Tiphareth (a beleza) a Yesod (o fundamento). Letra Hebraica: A’ain que quer dizer: Olho.
Na mitologia romana representa Diana (a Deusa Ártemis para os gregos) a deusa caçadora que rege a lua enquanto seu irmão gêmeo Apolo rege o sol.
Nesta releitura de Crowley, uma vez que a Diana do arcano apresenta vários seios, podemos dizer que foi inspirada na estátua Diana de Ephesus (cidade greco-romana da antiguidade que atualmente faz parte da Turquia).
Este arcano XIV, como diz o próprio Aleister Crowley em seu livro de Thoth, é a consumação do arcano VI (Os Enamorados) quando os dois seres do outro arcano se fundem em um ser híbrido promovendo a sua comunhão no sentido mais profundo. O rei negro e a rainha branca do arcano VI aqui se mesclam em harmonia e equilíbrio de forças dando origem a este outro ser alquímico de duas cabeças que mistura o fogo e a água em seu caldeirão, juntando os opostos e promovendo a perfeita unidade do ser. Pode-se notar ainda que a águia branca e o leão vermelho do arcano VI aparecem no arcano XIV com suas cores dramaticamente invertidas intensificando essa mistura e a consumação desta união. Enquanto os amantes se dissolvem no arcano VI, eles coagulam no arcano XIV como o próprio Crowley explica.
Pode-se ainda notar a representação do ovo órfico nos dois arcanos. O ovo órfico remete ao Ovo de Ouro de Brahma (Deus Indú da criação) que simboliza o universo. O ovo órfico também remete aos mistérios de Dioniso no sentido de transformação (uma vez que Dioniso antes de se tornar imortal, morreu como Zagreu e foi guardado na coxa de Zeus enquanto se transmutava no deus olímpico). E por último o ovo órfico remete a Orfeu e sua descida ao reino de Hades para resgatar Eurídice. Brahma criando um universo que transmuta, Dioniso se transformado em deus imortal e Orfeu descendo aos infernos são referências a processos alquímicos e à depuração. E a Arte de Crowley, representada pelo arcano XIV, acima de tudo faz referência a todos estes processos alquímicos.
O axioma acima da cabeça da Temperança é “Visita Interiorem Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem”.
Sua tradução: “Visita o Centro da Terra, Retificando-te, encontrarás a Pedra Filosofal”. Em outras palavras: “Visita o Teu Interior, Purificando-te, Encontrás o Teu Eu Oculto, ou, a essência da tua alma humana”. Podemos ainda trocar este axioma pela inscrição do Oráculo de Delfos que quer dizer exatamente a mesma coisa em outras palavras: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”. É através do auto conhecimento e das mudanças alquímicas interiores que conseguimos transmutar o chumbo em ouro e transformar as coisas e as pessoas ao nosso redor.
Os dois axiomas que seguem obedecem exatamente este mesmo princípio:
INRI – Igni natura renovatur integra (A natureza é completamente renovada pelo fogo).
INRI – Iēsus Nazarēnus, Rēx Iūdaeōrum ( Jesus de Nazaré Rei dos Judeus).
A natureza se transmutando e Jesus resssuscitando são dois exemplos de processos alquímicos regidos pelo arcano XIV. Pois no universo e no ciclo da vida tudo se transmuta, tudo tem um começo, um meio e um fim. E neste caso o mediador ( a Arte / a Temperança) é que equilibra as forças do princípio e do fim. Assim vemos que tudo tem uma energia criadora, que depois se organiza e logo em seguida se dissemina. E aqui temos vários exemplos de como essa trindade foi representada em várias culturas remetendo a este conceito de criação, organização e disseminação. O primeiro deles e o mais conhecido é: Pai (a energia criadora) Filho (a energia organizadora / a que estabelece a ordem do pai) Espirito Santo (a energia disseminadora que por um lado termina e por outro abre-se para algo ainda maior).
Na cultura indiana temos esse mesmo conceito de representação nas figuras de Brahma, Vishnu e Shiva, as três faces de Deus representando as três energias do ciclo da vida. Brahma sendo a energia criadora, Vishnu a energia organizadora e Shiva a energia disseminadora.. No Egito Osiris aparece como a energia criadora, Isis, a irmã, a energia mediadora e Hórus, o filho, a energia transformada de Osiris ressuscitado. Na própria religião Thelema desenvolvida por Crowley vemos um similar de Osiris, Isis e Hórus nas figuras de Nuit, Hadit e Ha-Hoor-Khuit. Essas três figuras inclusive aparecem no Aeon, arcano XX, que corresponde ao Julgamento e ao início da Nova Era.
Na astrologia também podemos observar a representação desta energia através dos conceitos de Cardinal, Fixo e Mutável. O zodíaco possui doze signos divididos em doze meses. Temos quatro estações do ano e portanto três signos para cada estação. Aqui o ciclo da vida é representado por uma estação que nasce no signo cardinal, estabelece-se no signo fixo, e dissemina-se no signo mutável. Então temos a primavera nascendo em áries (cardinal), estabelecendo-se em touro (fixo) e disseminando-se em gêmeos (mutável). O verão nascendo em cancer (cardinal), estabelecendo-se em leão (fixo) e disseminando-se em virgem (mutável). O outono nascendo em libra (cardinal), estabelecendo-se em escorpião (fixo) e disseminando-se em sagitário (mutável). E o inverno nascendo em capricórnio (cardinal), estabelecendo-se em aquário (fixo) e disseminando-se em peixes (mutável). Assim as estações do ano e os signos, também carregam em si essa energia cíclica da vida.
Outro exemplo dessa energia encontra-se na própria alquimia sendo representada por Sal, Mercúrio e Ácido Sulfúrico, pois esses três elementos carregam em si, nessa ordem, a mesma energia do cíclica das outras correspondências já citadas. Mediando entre o sal (passado concreto que representa a memória e o imutável) e o ácido sulfúrico (futuro abstrato que representa as aspirações, intensões e metas), o mercúrio representa as variações do momento presente. O mercúrio no centro também representa a habilidade de mudança das orientações internas e externas da existência. Ainda podemos falar de Cloto, Láquesis e Ártropos da mitologia grega. Essas três senhoras sábias são conhecidas como “As Moiras” ou “As Parcas”. Elas são as tecelãs do fio da vida e do destino. Cloto tece o fio, Láquesis dá os nós, direciona e estabelece a ordem dos fatos e Ártropos corta o fio.
Estas mesmas senhoras são as Norns da mitologia nórdica: Verdandi, Skuld e Urdr. Ainda na mitologia grega temos Cori, Persefone e Hécate, as três faces da senhora do inferno, esposa de Hades e que também corresponde às três fases da lua que podem ser vistas. Cori (a jovem, a lua crescente), Perséfone (a mulher, a lua cheia) e Hécate (a velha, a lua minguante). E a lua nova, a que não vemos, está ligada ao que acontece depois que encerra o ciclo. A lua nova está ligada à ascenção que seria o V.I.T.R.I.OL., o quinto elemento, o éter, o espírito. E no que diz respeito ao ser humano, a energia divina da trindade e do ciclo vital remete-se ao Amor, à Sabedoria e a Verdade. Energia que nasce no amor, estabelece-se e põe ordem com a sabedoria e fecha o ciclo com a verdade. Os exemplos da energia de trindade são infinitos em várias culturas. E o que cabe neste ensaio é falar sobre a Arte, a Temperança, a mediadora destas transmutações alquímicas representada pelo arcano XIV do tarot.
Digo que não foi sem um toque de extrema perspicácia que Aleister Crowley resolveu chamar a sua Temperança de “Arte”. Desde os primórdios de sua descoberta, a Arte tem proporcionado o mesmo papel transformador nas pessoas que a alquimia proporciona aos elementos. Na Poética de Aristóteles a tragédia grega, por exemplo, é explicada como o elemento mediador que provoca terror e piedade a fim de se alcançar a expurgação dos sentimentos. Mais alquimia que isso impossível!
A “Arte” é o “A’ain” hebraico, o olho que tudo vê, o espelho que faz as pessoas se encararem de frente para conhecerem o Universo e os Deuses. A Arte é a magia, é a expansão de Júpiter, é a flecha do arqueiro de Sagitário que alcança distâncias inimagináveis. A Arte é o caminho cabalistico que liga a beleza da obra ao seu fundamento e significado. A Arte é essa alquimia transmutadora, reveladora, expurgadora; é a Temperança mediando entre o princípio e o final das coisas. A Arte é a pedra filosofal, é descida de Orfeu aos infernos por sua causa celestial.
A “Arte” é o “A’ain” hebraico, o olho que tudo vê, o espelho que faz as pessoas se encararem de frente para conhecerem o Universo e os Deuses. A Arte é a magia, é a expansão de Júpiter, é a flecha do arqueiro de Sagitário que alcança distâncias inimagináveis. A Arte é o caminho cabalistico que liga a beleza da obra ao seu fundamento e significado. A Arte é essa alquimia transmutadora, reveladora, expurgadora; é a Temperança mediando entre o princípio e o final das coisas. A Arte é a pedra filosofal, é descida de Orfeu aos infernos por sua causa celestial.
E uma vez vivenciada essa jornada, transmutado, trancendido e encerrado o ciclo, alcançaremos a última etapa. A etapa da lua que não vemos a olho nú. Uma vez diante da lua nova, do éter e do espírito, poderemos enfim nos despedir.
Encerro com o monólogo final do personagem Próspero da peça “A Tempestade” de William Shakespeare. Este monólogo é a despedida de Próspero da vida e da Arte após suas profundas transmutações e compreensão de todas as coisas.
Meu poder já não existe,
Só a minha força persiste
É débil, mas é verdade
Que eu fico à vossa vontade,
Ou será Nápoles. – Não,
Tenho o ducado na mão,
Perdoei de alma serena,
Mereço escapar à pena.
Libertai-me, pois, da ilha,
Com vossas mãos-maravilha!
Vosso sopro às minhas velas vem
Ou meu sonho se retem,
De agradar-vos. E hora em falta
Do feitiço que me exalta,
O meu fim é o desalento.
Só de orações me sustento:
Que elas assaltem, bem forte,
Os muros da minha sorte.
Perdão que haveis de pedir,
Dai-me igual. Deixai-me ir.