Conforme ressaltei na minha última matéria, A Arte de Viver a Vida (25/05/2021), entre maio 2020 e maio de 2021, o Clube do Tarô abordou exaustivamente o tema A Arte em Tempo de Coronavírus, sob várias perspectivas, indo além do seu propósito básico, ou seja, Tarô e Linguagens Simbólicas. O tema se impôs naturalmente permeando os demais assuntos explorados pelo site.
Em abril do ano passado, já não podíamos mais ignorar a tragédia que avizinhava o Brasil, em particular, e o planeta como um todo, desde o final de fevereiro de 2020, período que marcou o aumento global do número de mortes por síndrome respiratória aguda grave. Imagens de dilacerar a alma passaram a se intensificar e circular pelo mundo através das mídias sociais.
Algo começava a chamar a atenção gerando medo e ansiedade na população global. O coronavírus era (e continua sendo) uma doença que se alastrava com velocidade preocupante e afetava, sobretudo, a população mais vulnerável, composta por idosos e/ou pessoas que apresentavam alguma comorbidade. Hoje, esse diferencial já não é tão claro, pois passado 14 meses do início da pandemia e com várias cepas em circulação, o vírus vem atacando com a mesma ferocidade gestantes, recém nascidos e crianças de várias idades. Enfim, o referido vírus tornou-se um agente democrático causador da doença: que ironia!
Desde que o mundo é mundo que as grandes calamidades e fatalidades, sejam elas naturais ou provocadas pela raça humana, servem de inspiração para muitos artistas (e também para amadores simpatizantes das artes) que buscam por meio delas elaborar os significados dos conflitos e os vazios individuais e coletivos, assim como usá-las como apoio para suportar os medos, as angústias, as tristezas, as perdas e a solidão oriundas de situações adversas. A arte tem o poder de produzir novas formas de ver e pensar a vida e é capaz de efetuar uma transformação positiva da realidade.
Com o isolamento social e físico causado pelo coronavírus, as varandas e janelas tornaram-se as únicas maneiras seguras – e não virtuais – e conexão presencial. Por outro lado, a internet se tornou a principal ferramenta de diálogo e entretenimento e o consumo de produções artísticas ficou mais amplo, gerando inclusive diversos museus para abrigar os acervos das obras virtuais sobre a pandemia, a exemplo do “Museu do Isolamento Brasileiro”, “The Covid Art Museum” e “Artes Virais”, dentre outros.
Podemos afirmar que se por um lado a arte ficou fragilizada com ações de fechamento de museus, suspensão de shows ao vivo, adiamento de festas populares etc., por outro lado houve um fortalecimento das mesmas via on-line por meio de lives musicais de artistas, visitas virtuais em museus, passeios turísticos online em cidades históricas e por aí vai. Se a pandemia arrefeceu os contatos presenciais ela multiplicou exponencialmente os contatos virtuais. A arte de tempo de pandemia e a tecnologia se unem para representar nossas aflições através de uma linguagem universal. Afinal, a arte tem o poder de expressar sensações e situações difíceis de traduzir em palavras.
Para o psiquiatra Paulo Amarante, a relação entre arte e saúde mental é mais comum do que se imagina. “Poucas pessoas sabem, mas o surrealismo foi criado por um psiquiatra, André Breton. A ideia do surrealismo era propiciar a emergência do inconsciente sem as limitações impostas pela sociedade, deixar aflorar os sonhos, pesadelos e desejos mais profundos. E a arte foi um dos grandes pontos do movimento surrealista, na pintura, no cinema, no teatro. Ela tem a capacidade de se aprofundar na alma das pessoas, nos desejos, nos instintos, no que há de mais obscuro e dar luz, e isso é profundamente criativo”. [Fonte: ComCiência]
Para o psicólogo e doutor em saúde coletiva da Unicamp, Bruno Emerich, a arte tem feito um papel de conexão na pandemia. “Estamos vivendo um momento de incertezas e inseguranças, em que muitas pessoas estão entrando em contato com dimensões da sua própria vida, da sua história e do seu próprio sofrimento, sem necessariamente ainda ter construído estratégias para lidar com isso. É algo bastante complexo, tem diferentes perspectivas, mas, de certa forma, a cultura ou a conexão com algo artístico que faça sentido para a pessoa pode ajudar”. Além do impacto pessoal, a arte também é importante para o convívio em coletivo, detalha o especialista: “Podemos pensar na dimensão cultural como algo que aproxima, apesar da distância, e que conecta, apesar das diferenças. É uma forma de ampliar a compreensão e o sentimento desse momento para todo mundo”. [Fonte: ComCiência]
A pergunta que fica neste momento é “Alguém vai querer consumir arte sobre a pandemia depois que ela acabar? ” A questão foi colocada em reportagem da Folha de São Paulo, publicada dia 13/06/20, escrita por Walter Porto, cuja matéria teve a participação da professora Paula Peron (Psicologia da PUC-SP) que assim se posicionou: “A arte dá forma, dá palavras e discurso para algo que nos preocupa, mas não encontra uma narrativa”. Para ela, a exemplo do pós-guerra, a psicologia do trauma ajuda a entender como vamos lidar com coronavírus na cultura.
Não são poucas as razões para querermos deixar o coronavírus para trás. Só no Brasil, já são mais de 475 mil mortos até o momento (na época da reportagem eram 41 mil mortos) e um número imenso de familiares enlutados, maior até se levarmos em conta as subnotificações de mortes ocorridas nas unidades do SUS e nas UPAs, além das mortes ocorridas em casa ou em frente aos hospitais, por falta de recursos para atendimento dos pacientes ( tempo curto para atender todas as pessoas que procuram socorro nas unidades médicas, falta de profissionais de saúde disponíveis para os atendimentos necessários, ausência de vagas em UTIs superlotadas e/ou inexistência de kit entubação).
Mesmo quem não foi infectado amargou a clausura de casa e o medo do contágio. A vontade de superar isso tudo impulsiona, aliás, um movimento de reabertura de espaços públicos que boa parte dos especialistas julga prematura (ainda hoje, um ano depois). E isso, junto com o negacionismo, ausência de liderança política responsável, falta de campanhas de esclarecimento para a população, falta de vacinas e a extrema pobreza de 35 milhões de pessoas (16% da população, de acordo com os dados FGV Social) no território brasileiro, forma o caldo adequado para a terceira onda do coronavírus no Brasil, com cepas muito mais letais, cujo contorno e consequências já estão à vista.
Voltando à questão chave, levantada anteriormente “Alguém vai querer consumir arte sobre a pandemia depois que ela acabar? acrescenta-se ” Por que alguém iria querer prolongar mais ainda um martírio que já dura meses consumindo arte sobre a pandemia, depois que o pior passar?” Essas questões são respondidas, na reportagem de Walter Porto, por dois estudiosos do assunto: o Professor da UNICAMP Márcio Seligmann-Silva e a Psicanalista Alessandra Parente.
“Por que ler Primo Levi? Por que ver “Shoah”?”, retruca Márcio Seligmann-Silva, citando o escritor italiano e a série documental de Claude Lanzmann que estão entre os testemunhos mais duros do Holocausto. “Porque existe uma demanda social, psíquica e coletiva da comunidade dos afetados, dos traumatizados.”
Toda arte sempre teve algo de inscrição do próprio testemunho na história, segundo o professor de teoria literária da Unicamp, que se dedica a estudar a relação entre memória e literatura.
A procura das pessoas por obras que recontam grandes sofrimentos está ligada à necessidade de elaborar seus próprios traumas. “Todo mundo passa por vivências traumáticas na vida. A gente busca essas inscrições e se identifica com elas. A recepção dessas obras de arte é um ato profundamente autorreflexivo.” Crédito: Folha de São Paulo
“A arte não deve ser só um lugar de refúgio”, aponta a psicanalista Alessandra Parente, doutora em psicologia social e do trabalho pela USP. Um bom trabalho artístico, segundo ela, não é apenas aquele que anestesia, que alivia dores, mas aquele que enfrenta o desafio de articular o que não entendemos bem.
“O que está acontecendo agora é uma coisa tão inédita que ainda não temos formas cognitivas e intelectuais para decifrar. A arte é fundamental para começar a configurar esses afetos e pensamentos.”
“Não é exagero algum dizer que a humanidade está passando por um período de trauma coletivo. O choque provocado pela abundância de morte e de pavor é tamanho que não temos, de pronto, nem imagens nem palavras para descrevê-lo.” [Crédito: Folha de São Paulo]
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